O ” Quarenta Views” abre espaço hoje para um artista revelação Diego de Santos. Para muitos que vivem da arte como artista, galeristas, curadores, críticos pode ser uma surpresa ou não, mas para mim foi. Na abertura da sua exposição individual “Viagem ao Vão” na C. galeria eu apareci e foi meu primeiro contato com a obra do artista. Me encantei com a forma poética e ao mesmo tempo política do desenho desse cearense.
Veio de Fortaleza e já encantou os cariocas mais eruditos digamos assim. Olha o que a curadora Fernanda Lopes escreveu sobre o trabalho de Diego de Santos.
“Ao longo dos últimos 15 anos, Diego vem estruturando sua poética na observação atenta do que está ao seu redor, a partir de um olhar e uma escuta sensíveis. Sua produção em desenho reflete esse olhar em volta. Ela chama atenção para fenômenos urbanos, ignorados, negligenciados, invisibilizados pelo cotidiano, e sua construção não só arquitetônica, mas especialmente histórica, econômica, política e social.
Os desenhos que mostramos ano passado na exposição Viagem ao Vão,tomam sua experiência de residir e se deslocar pelo Rio de Janeiro como ponto de partida. São como investigações da paisagem atravessada por trens urbanos, o espaço que compreende a faixa de lastro (camada de pedras que serve para dar estabilidade aos trilhos em relação ao solo e aos trens em movimento) e áreas da cidade que margeiam essa faixa de domínio da ferrovia”.
Seu trabalho é delicado e seu desenho com referencias arquitetônicas ultrapassa o limite da forma e esparrama no suporte sofisticação e elegância. Um primor.
A galerista Camila Tomé conta o que levou a ela como galerista adicionar o artista ao elenco ao seus representados.
“Conheci o trabalho do Diego através de um curador amigo em 2015. Desde então fiquei acompanhando sua trajetória e percebi que Diego era um artista importante para sua geração. Ele fala de Brasil mas de um Brasil bem específico. Tem uma pesquisa muito individual que dialoga diretamente com suas raizes e sua história. Suas obras em diferentes suportes- desenho, escultura, instalação, fotografia…. – apresentam traços políticos, sociais e arquitetônicos. Me impressionou a forma como ele conseguia produzir um trabalho tão político com uma plasticidade tão poética. Quase delicada.
Seguem as perguntas que o site fez para o artista.
Quando e como você começou a desenhar?
Comecei cedo, realmente muito novo. Minha mãe lembra que eu, com poucos anos de idade, costumava desenhar a noite até cair no sono. O que consigo recordar é de reproduzir alguma imagem das estampas da colcha da cama. E então o desenho sempre foi uma atividade muito presente, da escola até hoje.
O que te interessa como tema?
Muitos assuntos me interessam. Os diferentes conceitos / situações em torno da noção de morada e o deslocamento são recorrentes na minha pesquisa. Mas assimilo a eles outros temas, como, por exemplo, a astronomia e a vexilologia (estudo dos símbolos presentes nas bandeiras). Agora tenho buscado ampliar o alcance da minha pesquisa em torno do ofício do artista presente no imaginário coletivo e das especulações no mercado de arte, com base na minha trajetória.
As formas estão presentes no seu trabalho. Você tem uma explicação para isso?
Eu gosto de lidar diretamente com elementos simbólicos e os extraio do cotidiano, da história e de diferentes áreas do conhecimento. Eles me possibilitam trabalhar os assuntos abordados numa pesquisa e ampliar as possibilidades de leitura. É uma tentativa de desestabilizar os códigos tão racionalizados na nossa vida.
Quando você decidiu viver da arte você encontrou muitas dificuldades para essa tomada de decisão?
Tenho pensado e repensado muito essa questão, sobretudo nos dias de hoje. E pra responder inicialmente de forma objetiva, as dificuldades sempre existiram e acredito que não vão cessar tão cedo. A realidade do trabalho no campo da cultura reserva as posições mais confortáveis para quem sempre esteve ao lado dos que compõem as estruturas de poder. Não à toa, quem ocupa os cargos mais bem pagos e com direitos trabalhistas assegurados é quem pôde estudar sem precisar trabalhar, quem passou pelas melhores instituições de ensino ou até mesmo quem tem teve o privilégio de estudar fora. Então, trabalhei por alguns anos no educativo de museus e outros espaços culturais como estagiário, ganhando pouco, durante toda a graduação.
Em 2010, pouco depois da minha segunda individual, no Centro Cultural Banco do Nordeste, meu último contrato como estagiário chegou ao fim e eu segui produzindo porque senti as coisas fluindo. A partir daí passei a viver da minha produção, mas não foi bem uma decisão porque eu não sabia se ia conseguir ou não. Me entreguei e fui enfrentando, como faço até hoje.
Só pude entender como o sistema de arte funciona ao longo desses anos na prática. Minha formação em arte foi precária e naquela época os debates ecoavam pouco para além do âmbito local. As poucas instituições de arte proporcionavam alguns encontros, às vezes para poucos artistas, com curadores ou galeristas que viam portfólio e pronto. Raras eram as ações continuadas e isso passou a exigir de mim um investimento injustamente proporcional ao retorno. A não ser que você tivesse um carro para ciceronear alguém que estivesse pela cidade, um ateliê equipado para receber para um café ou condições de estar em um jantar num restaurante caro ou na casa de alguém importante. Foi aí que eu passei a entender mais uma noção de periferia, por ser nordestino, de Caucaia, região metropolitana de Fortaleza, o que também funcionava como um fator distanciador em relação ao “circuito de arte” da própria capital.
Desde a exposição no CCBNB, tive uma relação próxima com galerias de Recife, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo, mas nenhuma delas chegou a me representar oficialmente. Tudo ficava no campo do teste porque eles queriam ter certeza de que valeria a pena trabalhar com um artista de longe. E embora elas conseguissem sempre vender obras minhas, não era suficiente para a aposta. Entendo que nem toda galeria pode, consegue ou está aberta a uma atuação mais ampla e também não é só ela que determina o que vai funcionar ou não. Mas foi assim que comecei a participar timidamente das feiras e eu, sempre que podia, dava um jeito de estar presente, seja na feira ou na própria galeria. Era uma troca, que se dava por tempo determinado.
E assim foi se dando minha inserção, juntamente com os projetos que eu aprovava em editais ou em seleções para salões em que eu mais gastava que recebia. E nesses casos foi um aprendizado suado porque elaborar projetos e propostas não se aprendia na faculdade e mal se via cursos do gênero em Fortaleza.
A obra de um artista nas minhas condições precisa passar por muitas curvas. A trajetória de quem é do Norte e Nordeste do Brasil sobrevive a períodos de invisibilidade e à montanha resta, quase sempre, ir aos pés de Maomé. Há constantemente no meu trabalho um diálogo essencial com a solidão, e pensar isso durante uma quarentena me soa familiar. A crise é mundial e precisamos nos privar de muitas coisas com o objetivo de conter uma pandemia, mas acho também que se trata de um resgate muito maior, que devemos fazer com urgência. Na arte, para quem não goza dos mesmos recursos que a classe privilegiada, situações de isolamento e privação são muito comuns.
Quem foi seu primeiro mentor? E desde então quem te influencia?
Maíra Ortins, artista pernambucana radicada em Fortaleza, foi a pessoa com quem sempre troquei, desde o início da minha trajetória. Ela também é curadora e foi gestora cultural por muitos anos, assumindo a Coordenação de Artes Visuais da Prefeitura de Fortaleza. Esteve à frente do Salão de Abril, quando este ainda era nacional e foi responsável por torna-lo o evento do gênero mais importante do Brasil. Maíra ajudou, inclusive, a me situar em relação ao desenho na minha pesquisa, bem como diante do sistema de arte. Curou a minha segunda individual, no Centro Cultural Banco do Nordeste, em 2009.
Destaco também a importância de Jacqueline Medeiros, que implantou a política de editais no CCBNB, o que possibilitou que o trabalho de muitos artistas, locais e nacionais, pudesse circular a partir de exposições no centro cultural. Ela me acompanha há muito tempo também. Por fim, Efrain Almeida, artista cearense que vive no Rio há muitos anos, me apresentou inúmeras oportunidades na cidade, além de compartilhar sua vasta experiência comigo, seja no que diz respeito à formação e inserção no mercado de arte.
Sobre quem me influencia, são muitos! Mas adianto que são profissionais não só das artes visuais, mas do cinema, da música e até da gastronomia e do esporte, pela forma como lidam com suas profissões e pelo impacto que são capazes de causar. Nas artes visuais, posso citar Márcia X, Marepe, Brígida Baltar, Sara Ramo, Cinthia Marcelle, Adrian Paci, Francis Alys, Richard Long, o próprio Efrain Almeida, entre outros.
Quais são os materiais que você usa?
São muitos! Seja nos desenhos ou em obras instalativas, o que determina o uso do material é uma negociação entre um arquivo de desejos e o que está sendo investigado no projeto em desenvolvimento. Normalmente funciona assim: muitos materiais, objetos e suportes me sobressaltam o tempo todo e eu fico com muita vontade de trabalhar com eles, então eu vou estocando tudo isso na memória (às vezes consigo guardar em casa mesmo), que é o que eu chamo de arquivo de desejos. E isso não ocorre por acaso, claro. Em algum momento eles vão ganhando sentido diante do que eu estiver pesquisando, então pode ser incorporado ao exercício experimental. Mas quase tudo que eu utilizo no trabalho é simples, às vezes foi descartado e eu recolho, cato na rua, compro em lojas de preços populares. Um exemplo são os pedaços de madeira compensada que passei a usar como suporte para o desenho. Isso é recente e comecei aproveitando os refugos das madeireiras. Já tem um tempo que venho catando aqueles fios coloridos que ficam em volta dos postes depois que os técnicos fazem reparos nas fiações. Todos os dias quando saio para correr em volta do estádio no Engenho de Dentro, volto com vários deles no bolso. É para a construção de um ninho.
O que eu sempre gosto de ressaltar é que o uso dessa materialidade sempre esteve diretamente relacionado à minha condição social. Quando comecei a experimentar os desenhos, utilizava caneta esferográfica e papel sulfite da impressora na escola que eu trabalhava como auxiliar administrativo. Lembro de ouvir comentários do tipo “você deveria usar um papel de qualidade, importado, esse aí vai se acabar logo”. Adoraria, mas o fato é que eu não tinha a menor condição para isso e continuo sem ter, pois o meu trabalho ainda não me proporciona essa estrutura. E por mais que não fosse óbvia, essa abordagem sempre esteve lá, era também o assunto do trabalho, sabe? Nunca me interessou reforçar uma precariedade, porque sobreviver com pouquíssimos recursos não nada é bom, não é uma deia que eu gostaria de replicar e a qual eu estivesse sempre associado. Quem festeja sobre isso é a classe média que detém as peças que fazem a engrenagem funcionar no sistema de arte. Eles acham bonito. Eu, não! Então, prefiro a alquimia que me possibilita transformar o que tenho para lidar. E não se trata de estetizar, de tornar bonito, é que acho muito curiosas as respostas que me são dadas pela materialidade no fazer artístico. Foi a partir disso, também, que passei a me entender como artista.
E seus planos hoje quais são?
Ao mesmo tempo em que tenho feito muitos planos, acho que o momento é de repensar muita coisa, sem deixar de agir. O cenário cultural no Brasil atravessa um período delicado. A precarização do nosso trabalho caminha para um conflito que vai exigir muito da gente e me pergunto até que ponto estamos pensando estratégias para enfrentar isso juntos. Mas estamos agindo, só falta entender que precisamos de muito mais.
Estou completando 15 anos de profissão e confesso que a prioridade é sobreviver! Sei que não é tanto tempo assim, e nem de longe penso em publicação, ou qualquer tipo de ação comemorativa. Nem acho necessário. O que quero dizer é que considero tempo suficiente para afirmar minha consciência em relação à área em que atuo, diante do que já realizei nesses anos de plena atividade, o que conquistei e o lugar em que me encontro agora.
Hoje sou representado por uma galeria, a C. Galeria, do Rio de Janeiro, e é uma conquista da qual me orgulho e sou feliz por trabalhar com uma galerista aberta ao diálogo, que respeita o meu processo criativo e que sabe da importância da circulação do trabalho além da venda, como a institucionalização e a presença em programas de ocupação de espaços públicos. Mas ainda temos muito a trabalhar, muitos caminhos a serem abertos rumo aos impactos que eu desejo causar. Para se ter uma ideia, nesses 15 anos, nunca participei de uma única exposição em São Paulo. Não que seja uma espécie de objetivo de carreira, porque não é! Mas é extremamente sintomático. Continua sendo um longo processo.
Profissionalizar-se como artista é um tipo de investimento sem fim. A gente precisa, de uma vez por todas, fazer todo mundo entender que trabalho é para ser visto e tratado como trabalho. E isso tem a ver com aquela pergunta, sobre o que me interessa como tema e o que estou pesquisando hoje. São questões que passam a fazer parte da minha vida de uma forma muito mais ampla, porque é urgente! Eu preciso falar sobre isso no meu trabalho porque é o meu principal meio de expressão. E é essencial, tal qual o sentido de morada e a minha condição relativamente nômade. Por fim, o que desejo é manter meu trabalho vivo, pois é assim que eu existo. Portanto, os planos são de séria avaliação e de muito trabalho pela frente.
Fotos Divulgação