Uma música elegante, sofisticada e cheia de bossa. Assim é o trabalho da Banda Cisma, que acaba de lançar um CD com onze canções. É um trabalho pujante e comovente, produzido com esmero e criatividade. O trio é formado pela cantora Luisa Buarque, o guitarrista Bartolo e o pianista Marco Martins. Luisa Buarque é professora de filosofia antiga na PUC, graduada pela UFRJ e com mestrado e doutorado.
É admirada por seus alunos graças ao modo inteligente com que traduz para o mundo de hoje os princípios da filosofia antiga, desde a metafísica de Aristóteles até a dialética de Platão. Oriunda de uma tradicional família de músicos – filha de Chico Buarque, prima de Bebel Gilberto, sobrinha de Miúcha e cunhada de Carlinhos Brown, ela agora surpreende como integrante de um grupo que apresenta um trabalho ousado e inovador. A Banda Cisma, respeitando o isolamento social, se reuniu virtualmente e nos concedeu uma entrevista para nos contar mais sobre esse trabalho.
1 – O que é a Banda Cisma? Como vocês se definem e se apresentam para aqueles que
agora estão tomando conhecimento da banda?
Banda Cisma: A Banda Cisma é composta por Bartolo, Luisa Buarque e Marco Martins. Para nos apresentarmos, precisamos recapitular um pouco da nossa breve história: uma dupla, Luisa e Marco, compôs um punhado de canções e se juntou ao amigo Bartolo – músico, produtor, conselheiro e companheiro – a fim de registrá-las.
Reunido o grupo e selecionadas as canções, iniciou-se o processo de gravação. O diálogo musical foi tão frutífero e tão marcado pela colaboração entre os membros desse trio, que decidimos apresentar o resultado obtido como criação de uma banda. De fato, nós fomos nos tornando uma banda ao longo das gravações. É possível dizer, portanto, que o processo foi o inverso do habitual: primeiro nos juntamos para gravar canções sem saber bem o que ia surgir disso, depois formamos uma banda.
2 – Vocês estão lançando um belo CD. O disco tem um conceito bem definido, uma produção sofisticada e um punhado de belas canções. Como foi o processo de criação desse trabalho? Como ele surgiu e se desenvolveu? De onde surgiu o nome do grupo?
Banda Cisma: Como dito antes, partimos de músicas previamente compostas. Passamos dois longos anos gravando essas músicas, de modo que o processo foi bastante artesanal. Íamos refletindo sobre o que cada canção “exigia” em termos de instrumentação e de ambiência. Considerávamos que cada música tinha o seu próprio universo e testávamos as nossas ideias, na medida do possível, para ver se funcionavam ou não. Aos poucos, íamos percebendo os traços que ligavam umas canções às outras e formávamos pequenos grupos de canções com características comuns.
Quando achávamos que tínhamos entendido melhor um certo grupo de músicas, chamávamos instrumentistas para participarem das gravações e íamos ouvindo e incorporando o que cada um/a dele/as trazia. Como raramente os arranjos estavam completamente fechados, todas e todos os que participaram das gravações deixaram as suas marcas muito pessoais. Perto do final do processo, tivemos a felicidade de contar com a companhia profissional de Gil Fortes. Gil foi o responsável pelas mixagens e pela finalização do trabalho. Ele entendeu tudo o que queríamos e traduziu esses desejos com muita sensibilidade.
O nome da banda foi uma incógnita durante muito tempo. Queríamos apresentar o trabalho como criação de um trio, que é o que ele de fato foi, mas o nosso trio não tinha um nome. Acabamos optando por adotar o nome de uma das canções do CD. Um nome que nos parece simpático, além de ser uma palavra de bela sonoridade e de significado curioso.
3 – O Brasil tem uma tradição musical muito forte. Sempre fizemos uma das melhores músicas do planeta. Mas os críticos e observadores atentos costumam dizer que a MPB não vive um de seus melhores momentos. O sertanejo universitário, o funk oportunista e o pagode fácil dominam as paradas de sucesso. A melhor música brasileira ainda é aquela produzida pela geração que surgiu nos anos de 1960/1970.
Há quem diga que falta renovação. Vocês concordam com isso? Afinal, a palavra cisma significa desacordo, dissidência de opiniões, separação de uma coletividade.
Banda Cisma: Não concordamos com esse diagnóstico de modo algum. Aliás, a nossa cisma não é dissidência. Queríamos apenas evocar aquela ideia fixa que popularmente identificamos como uma cisma. Aquela vontade ou opinião que muitas vezes é sem razão e sem fundamento, mas mesmo assim é fundamental. Somos pessoas que cismaram com uma coisa. Cismamos em gravar algumas músicas compostas em casa nas horas vagas, chegamos a achar que não conseguiríamos atingir o final do trabalho, e agora comemoramos o resultado da nossa cisma.
4 – Quais são as influências musicais da Banda Cisma? Quem vocês escutam e permitem que exerça influência na sua música?
Banda Cisma: Temos duas nacionalidades (um português e dois brasileiros) e três percursos muito distintos. São vivências musicais díspares, com alguns pontos em comum. Seria não só impossível como desnecessário listar referências, até porque todas e todos são convidados a exercerem influência na nossa música. Tudo é permitido; se faz barulho, ou até se não faz, pode e deve entrar.
No caso das letras, há algumas referências, quase-citações e citações explícitas, saídas da literatura ou de letras de canções. A rima de ‘à toa’ com ‘loa’ de Caetano Veloso, o ‘vasto mundo’ de Drummond, a frase de Hemingway que serve como epígrafe de ‘A Arte da Pesca’, Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo na tradução de Mantovaneli e um poema de Fernando Santoro inspirado em sua tradução de Empédocles.
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5 – “Canção de Empédocles” é uma das mais belas músicas do álbum “Réquiem”.
Empédocles foi um famoso filósofo pré-socrático. Qual a influência da filosofia no trabalho da Banda Cisma?
Banda Cisma: Luisa é professora de filosofia e compôs as letras do álbum. É inevitável que algumas delas evoquem temas filosóficos e reflitam essa experiência de sala de aula.
6 – Canções como Sherazade, Réquiem, Cisma e Monumento revelam delicadeza e elegância. O que serve de inspiração para as músicas do grupo?
Banda Cisma: Cada caso é um caso, mas na maior parte das vezes a melodia e/ou a harmonia sugeriram o assunto da canção. No caso de “Sherazade”, Marco usou uma escala turca que havia aprendido com um amigo e compôs a melodia a partir dela. A sonoridade que costumamos identificar como ‘árabe’ evocou os contos de As Mil e Uma Noites e os mundos lindos e assustadores que aparecem ali. No caso de “Réquiem”, ao contrário, a ideia do jarro de barro de Pandora veio antes. Ela apareceu durante uma apresentação que Luiz Otávio Mantovaneli fez de sua tradução de Hesíodo em um colóquio universitário (de onde foi retirada a quase-citação “cumulas de agrados meus dez mil pesares”).
A melodia, nesse caso, chegou depois; foi composta sem harmonia, só com o acompanhamento simples de uma marimba. “Monumento” nasceu das improvisações de Marco Martins no piano. A música melancólica puxou a letra melancólica. Finalmente, no caso de “Cisma” tivemos uma música composta mesmo a seis mãos. Um mote com duas frases musicais e início de letra foi lançado pela Luisa e os parceiros Marco e Quito Ribeiro foram aumentando a canção, desenvolvendo a ideia, sugerindo parte A e parte B. A letra foi finalizada depois, a partir do mote inicial e incorporando sugestões dos mesmos parceiros.
7 – O trabalho da Banda Cisma foi produzido num momento em que o Brasil vive a ascensão do fascismo. É por isso que se observa uma certa melancolia em algumas canções?
Banda Cisma: Quando compusemos as canções, e durante a maior parte do processo de gravação, sequer suspeitávamos que chegaríamos ao ponto em que nos encontramos agora. Vivemos juntos o golpe do “impeachment” e a tragédia que as últimas eleições presidenciais representaram. No entanto, parece-nos que o cd não serviu para expressar a nossa indignação com esse cenário. Pelo menos não conscientemente (a não ser no caso da tragédia de Mariana, citada na “Máquina Planetária”). A sensação que temos é que o trabalho ia fluindo paralelamente a tudo o que acontecia, quase que apesar de tudo. Impossível não haver alguma comunicação entre as duas realidades, claro, mas talvez ele representasse para nós muito mais um momento de fuga do que de imersão na realidade política do país.
Quanto à melancolia, ela está sempre por aí. Em alguns momentos é mais presente, como agora, mas de todo modo ela está sempre rondando. Assim como a alegria, a celebração e as nossas cismas cotidianas. Para terminarmos citando a última canção do cd “Oxalá a sorte venha…” Por outro lado, é verdade que se o cd veio a público neste momento particular, ele não deixará de ser lido sob essa ótica. A sua recepção será necessariamente condicionada pela época em que ele foi lançado, mesmo que isso não tenha sido exatamente premeditado.