Em uma das minhas idas São Paulo em 2018 e no Salão dos Artistas Sem Galeria, na galeria Zipper e dois artistas me surpreenderam Iago Gouvêa e Stella Margarita. As obras destes dois artistas grudaram na minha mente e os procurei no instagram e vi que Iago mora em Belo Horizonte e Stella apesar de ter lido nos créditos Uruguai, ele morava no Rio. Nomes e amizades nos aproximaram e lá fui eu no alto de Laranjeiras conhecer a artista em seu atelier. Gostei de tudo que vi.
Havia uma superfície poética nas cores fortes e nos movimentos da sua pintura. Que me agradava, mas ao mesmo tempo me colocou em dúvida se eu estava preparado para aquela beleza. Eu sempre procurando um drama, um sonho-pesadelo.
Percebi que aquele pintar era difícil. Em todos os quadros havia um lirismo e aquela era sua marca. Alguns artistas pesquisam mudam como fases algumas técnicas, mas sempre mantém algo que talvez o identifique. Outros que acredito ser o caso de Stella aprofundam sua identidade. Levam ao extremo essa busca e aí consiste a luta árdua diária do artista. Esse aprofundamento.
Stella vive e transborda essa busca para o abismo do conflito e do apego das relações humanas. Tudo com poesia.
1) O que te levou a pintura?
A pintura em minha vida foi a surpresa de um maravilhoso acaso. Aos cinquenta anos de idade, morava em Caracas e uma amiga convidou-me a assistir sem compromisso um grupo de estudos de pintura que ela frequentava. No primeiro encontro, o meu interesse maior era o de passar aquele agradável instante de aula lendo um livro e tomando chimarrão. Lembro-me de que o professor teve a razão e sensibilidade de que eu poderia fazer daqueles encontros uma bela oportunidade de aprendizado. Argumentei sem sucesso que não era talhada para aquela atividade, e, sem me dar ouvidos, amassou um papel, colou-o na parede, entregou-me um lápis e me convidou a desenhá-lo. Sem que eu tivesse total consciência, essa foi a pedra fundamental de minha paixão. Aquele grupo logo se dissolveu e acabei me mudando para o Rio de Janeiro. Coincidentemente, uma amiga que pertencia àquela turma também veio morar na Cidade Maravilhosa. Um dia, com um pincel na mão, disse-me que descobrira um lugar para prosseguirmos nossos estudos em pintura chamado Parque Lage. Como a pintura já estava epidérmica, fui lá ao meu encontro.
2) No meio do percurso entre a sua imaginação e a pintura qual é o maior obstáculo?
Não chamaria de obstáculo, mas de fases do processo. É necessário estudar com afinco as técnicas da pintura em si, desenho de observação, desenho anatômico (fundamental para mim, já que trabalho também com relações dos corpos), teoria, história da arte além de frequentar museus e galerias de forma constante. Precisamos experimentar, errar, acertar, perceber o que nos afeta para iniciar um percurso coerente com os nossos interesses, transformando tudo em alimento que nutre a nossa imaginação e o nosso fazer artístico. Existe um senso comum de que para formar um profissional são precisos no mínimo dez anos ou dez mil horas de devoção. Eu realizei essa maratona, e por anos, minha dedicação diária foi de onze horas. Hoje não há nenhum dia que não pense em pintura. O meu trabalho é minha extensão e eu sou a sua extensão.
3) Sua pinturas são imagens do inconsciente?
Diria que em parte sim. Penso no sentido psicanalítico e uso o iceberg como metáfora da mente humana, onde a consciência, o que comumente entendemos, é a parte emersa que representa uma pequena porção de sua verdadeira dimensão. O inconsciente, por outro
lado, é a maior parte submersa, escondida sob as águas onde se encontram os atos falhos, desejos, memória reprimidas, emoções banidas do consciente, e, portanto, praticamente inacessíveis à razão. A partir desse insondável, aceito a chamamento imagético de filmes, performances, fotos de jornal, revistas, encontros, álbuns de família para compor o meu acervo. Ingmar Bergman, Anne Imhof, meus filhos e netos vivendo o cotidiano são todos base prática de minha obra.
4) O desenho é o seu ponto fixo e a pintura é a fluidez ou é mais massa?
Minha pintura pode ser designada como mancha num sentido mais restrito, na qual não se destaca uma linha desenhada. Em meu processo, porém, começo as telas com um desenho rarefeito, um esboço com traços bem simplificados. A partir daí num decurso mais fluido, entram as manchas, as massas de cor, as áreas de tela que respiram, pinceladas que se sobrepõem em camadas e mais camadas. O pincel e as tintas são os que me conduzem nessa contradança.
5) o que você busca na pintura?
O que a pintura busca em mim, talvez seja a formulação. Não vejo meu trabalho como um fim a chegar, mas como um processo. Na pintura, ora os dois pratos da balança estão tensionados de forma equânime, ora os pratos se desequilibram e sobem e descem numa deliciosa e inquietante gangorra. Vivencio devires, alguns momentos mágicos em que a pintura e eu somos um só e nos confundimos. Seria como perguntar qual é a busca da minha vida. Como diz Antonio Machado: – Caminhante, são suas pegadas o caminho e nada mais. Caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao andar.
6) Quando você começou a pintar foi uma libertação ou mais um aprisionamento?
A arte é libertadora. Pintar é um universo que se abre tal qual a difração de ondas, como desvio ou como espalhamento, contornando ou transpondo obstáculos em seu caminho. Pintar é jogar uma pedra num lago no qual vemos a formação de círculos concêntricos que se ampliam, e que tanto podem ser refletidos como refratados. A maior ou menor capacidade que a pintura ou a onda tem de sofrer difração relaciona-se com o tamanho do obstáculo a ser contornado e a largura da passagem a ser transposta.
7) Sua pintura tem muito corpos em movimento porque esse tema te atrai tanto?
As relações e as pulsões me atraem. Os sentimentos universais como a dor, o amor, o cuidar. O universo das imagens dispõe da sobreposição de elementos em permanente tensão com inúmeras possibilidades com sentido aberto e com significados à espera do outro. Algo como Aby Warburg propunha no estudo das imagens, centrado na gestualidade e no movimento, levando em conta os afetos e as pulsões de desejo para descobrir a potência da imagem autônoma sem importar sua origem, mas sim o seu significado. Gosto da ideia de representar gestos e movimentos com alto conteúdo expressivo de amor, medo, dor, raiva e paixão que se perpetuam na memória visual coletiva como pegadas na trajetória das gerações da humanidade. Movimentos como expressão visível de estados psíquicos que foram fossilizados nas imagens.
8) Sua paleta de cores quando você decide por uma você fica até ela se esgotar?
Acredito que qualquer paleta de cores é um universo inesgotável. Artistas como Morandi e Robert Ryman por exemplo, investiram suas vidas em estudos intensos de pintura limitados aos brancos com uma paleta reduzidíssima, mas nunca chegaram ao seu esgotamento.
9) Você pinta diariamente? E como está sendo agora nos tempos da quarentena?
Sim, uns dias mais, outros menos. Não me reconheço de outra forma. Desde que comecei a pintar nunca parei. Como o trabalho de atelier é naturalmente solitário, a quarentena nesse sentido não afeta o pintar. Na prática, transferi grande parte dos materiais que utilizo para meu apartamento, onde a luz natural da varanda, a música e o acervo de imagens que construí ao longo dos anos têm sido a minha melhor companhia. Percebi que a escala dos quadros diminuiu um pouco e talvez por um espelhamento do que ocorre no mundo lá fora, estou produzindo quadros com pessoas isoladas, sem interações sociais. O isolamento social me impede de sorver obras ao vivo em museus e galerias, de trocar com outros artistas experiências pictóricas irreproduzíveis por meio digital ou fotográfico, de estar com a minha família e capturar mais momentos in-tensos que ampliem o meu universo sensorial e imagético. Isso também passará. É questão de tempo.
Colaboração de Julie Brasil
Fotos Divulgação