Há uns dois meses atrás fui conferir os escolhidos para o Prêmio Pipa 2020 e fiquei impressionado com a qualidade de novos artistas e de suas pesquisas. Passado alguns dias trocando umas ideias com a jornalista Claudia Noronha, antenada que ela é me apontou um artista que ela gostava muito e que estava entre os escolhidos.
Antonio Tarsis vem na contra mão das possibilidades e seu talento é bem visível. Iniciou seu estudo ainda jovem e partiu para encontrar sua identidade e sua arte. Sua aventura artística o levou até Londres onde morou por um tempo e após um pit stop aqui no Rio, o artista volta para Europa onde está confirmado para a residência na Akademie Schloss Solitude em Outubro de 2020, 6 meses, , Alemanha.
Mandamos algumas perguntas e conversamos pelo celular. Esse baiano de Salvador com certeza vai brilhar pelo mundo.
Fotos Alex Reis
Quando você começou a se interessar pelas artes em geral? Não sei exatamente, mas de uma forma ou outra, sempre me interessei pela prática artística. Em diversos momentos e situações, na minha infância e adolescência, lembro-me de sentir atração e curiosidade pela atividade criativa. Uma das minhas memórias mais antigas foi aos 6 ou 7 anos: eu não tinha dinheiro para comprar cartas de Yugi-oh, então, decidi desenhar e criar minhas próprias cartas, e depois, meu próprio jogo. Nessa época, minha irmã trabalhava como manicure. Eu pegava os esmaltes coloridos dela e fazia pinturas nas paredes. Mais tarde, com dez ou onze anos, trabalhei durante algum tempo com meu tio, que era pintor de paredes. Nessa época, eu guardava as sobras das tintas para fazer pixação. Comecei bem jovem a pixar, por influência do meu irmão. Alguns anos depois, aos 14 anos, passei a pintar em papelão, tela, madeira, materiais que pegava na rua, enfim, todos os suportes acessíveis para mim, naquele momento. Sua educação artística começou na escola? Eu estudei até a 5a série do ensino formal. Abandonei a escola muito cedo. Esse modelo de ensino público do Brasil, acho totalmente fracassado. Não me encaixei. Por outro lado, sempre amei os livros. Na escola, matava aulas para ficar na biblioteca, folheando os livros. Era uma biblioteca bem simples, uma escola pública precária, haviam poucos livros, mas foi muito importante para que eu entendesse que havia algo atraente para mim no espaço do ensino formal. Depois disso, durante quase 5 anos, caminhava praticamente todos os dias, por 40 minutos, do bairro das Sete Portas, onde morava, até a biblioteca pública de Salvador, nos Barris. Lá, passava horas na seção dos livros de arte. Assim, se deu meu primeiro contato com o trabalho de vários artistas e arquitetos. Foi mágico. Dessas leituras, veio minha educação artística, depois ampliada pelas informações infindáveis da internet – extremamente importante para mim. Minha formação veio do esforço diário para conhecer e aprender o novo.
Onde e como foi feito o seu aprendizado?
Meu aprendizado ocorre todos os dias. A minha história me ensinou muito. Tive uma vida difícil. Nos primeiros anos da infância, morei num dos bairros mais violentos de Salvador. Isso definitivamente me marcou. Era tudo muito pobre, não havia sistema de esgoto ou água potável. Passávamos dificuldades enormes. A miséria é um pacote: fome, abuso, morte, violência, descaso, trauma, enfim…. Uma série de coisas terríveis. Meu maior aprendizado foi ter passado por essas experiências sem embrutecer. Longe de mim romantizar esse lugar, mas ter vivido ali me trouxe um olhar diferente sobre muitos aspectos da vida. Especialmente no contexto da arte e cultura, ocupado geralmente por grupos de pessoas privilegiadas e protegidas.
Sua pesquisa atualmente é relacionada a que?
Depende muito, cada trabalho surge de uma pesquisa diferente. Quero ser um artista diverso, falar sobre diferentes temas, e ao mesmo tempo. Sinto que poderia (e gostaria de) estar fazendo ou participando de 3 ou 4 exposições simultâneas, sobre assuntos diferentes, com obras totalmente distintas. Nunca pretendi reproduzir o mesmo trabalho por muito tempo. Não quero ficar preso ou limitado à apenas um conceito ou técnica. Não pretendo tratar somente dos assuntos do corpo negro, da arte negra. Isso sempre será. Porém, quero transcender qualquer limite e assunto, ampliar e evoluir minha subjetividade, quero encontrar o desconhecido, talvez seja essa minha principal pesquisa.
Quais são as suas referências?
Variam conforme a pesquisa. Atualmente tenho pensado muito em Arthur Bispo do Rosário, Abdias do Nascimento, Cildo Meireles, Diébédo Francis Kéré, Goutam Ghosh, Oscar Murillo, Laercio Redondo, Howardena Pindell e Henri Matisse.
Seu material de uso nas suas pinturas como você escolhe?
Eu sempre trabalho com materiais que circulam nos universos informais. São itens ou embalagens que passam despercebidos na vida cotidiana, imagens ou detalhes menosprezados, quase invisíveis. Gosto de dar dignidade para algo que foi abandonado, desprezado, ignorado ou esquecido.
O que te possibilitou ir para Londres?
Eu nunca imaginei essa possibilidade, nem mesmo cogitava viajar por outras cidades, ir além de Salvador. Mas aos poucos, a vida foi me encaixando em encontros e acontecimentos que me possibilitaram desconstruir esse raciocínio de pertencimento a um único lugar: meu bairro, minha casa, minha vida de sempre. Em 2016, participei do 5o prêmio Energias na Arte, do Instituto Tomie Ohtake. Foi minha primeira exposição. Eu nunca havia saído da Bahia, nem viajado de avião, não conhecia nada nem ninguém, era um absoluto outsider. Essa exposição trouxe para mim o meu primeiro prêmio. E como fruto disso, uma residência artística no Lugar a Dudas, na Colômbia. Esses eventos desmantelaram a falta de expectativa que havia em minha vida e comecei, a partir daí, a cogitar a possibilidade de circular com o meu trabalho e projetos. Em 2018, fazendo o Curso de Formação e Deformação no Parque Lage, no Rio, eu participei da Art Rio, no pavilhão Brasil Contemporâneo. Foi um projeto solo, que me rendeu bons frutos e algum dinheiro para viajar. Além disso, um edital de Cultura, da Bahia, me possibilitou desenvolver uma pesquisa de três messes na Inglaterra, sobre O Ciclo do Ouro no Brasil e a Revolução Industrial. E ainda houve o encontro com a minha mulher e parceira, Marcia Leite, que me apoiou muito. Nós largamos tudo no Brasil e fomos juntos. Agora, estamos preparando o nosso retorno a Londres e vamos passar seis meses na Alemanha, na Akademie Schloss Solitude, em Stuttgart, onde vou produzir os trabalhos que estou pensando a partir da pesquisa sobre o Ciclo do Ouro.
Quais são seus interesses lá?
Em Londres, fiquei durante nove meses desenvolvendo uma pesquisa sobre o Ciclo do ouro no Brasil e suas relações com a Revolução Industrial, promovida pela Inglaterra, no século XVIII. Atualmente estou interessado em entender como a revolução Industrial afetou o corpo negro. Principalmente o corpo negro sul americano. Quero entender também como essa nova transição, da Era Industrial para a Era da Inteligência Artificial, vai resultar, o que vamos perder e ganhar, avançar ou retroceder, como seres humanos. Quero trabalhar com os restos desses materiais industriais que não mais existirão ou serão encontrados nesse futuro da I.A., ou que irão se modificar, tanto em suas formas e manejos de produção quanto esteticamente.
Você é um artista que pesquisa o Brasil?
Pouco tempo atrás, eu achava que sim, que eu pesquisava o Brasil. Hoje, o Brasil é uma parte da minha pesquisa.
Seus planos de carreira?
Estou trabalhando para chegar numa posição ideal de produção. Ou seja, de forma que eu possa pensar e executar minhas ideias e projetos, com o tempo e os recursos necessários, para que esses projetos existam da maneira mais próxima e possível do que imaginei.
Você trabalha com alguma rotina?
Sim, atualmente tenho trabalhado cerca de 10 horas por dia, com 4 assistentes. Respeitando todas as medidas de proteção contra o Covid-19 indicadas pela OMS, obviamente.
A tela branca te preocupa e Quais são os formatos que você mais gosta de trabalhar?
Não sou muito de me preocupar com a tela branca, aliás, a tela branca é a ultima coisa que me preocupa nesse momento. Trabalho com muitos suportes, a partir de materiais que são descartados ou ignorados. Gosto da composição, da colagem, da escultura, da impressão, da pintura, sempre a partir de elementos cotidianos. Sou muito aberto a formatos. E gosto de trabalhar no chão, com o suporte deitado sobre o chão. É raro eu usar um suporte suspenso.