1 ) Como e quando você começou a se interessar por arte?
Meu interesse em criação vem desde a infância. Como fui uma criança do interior e sem muito acesso a equipamentos culturais, como museus e galerias, eu me imaginava como um publicitário ou alguém do setor de criação. A arte não era muito uma opção porque eu não tive outros artistas na minha convivência. Justamente por isso que eu me formei em comunicação, tendo uma boa bagagem de Estudos Culturais também. O interesse estrito em arte só começou quando entrei na universidade e comecei a pesquisar mais sobre arte contemporânea, tendo uma ênfase nos estudos sobre performance e fotografia.
2) Seus primeiros diálogos com as exposições já apresentam um caminho em busca da sua identidade dentro da arte. Você teve alguma orientação (MENTOR) ou esse caminho estava já trabalhado dentro de você?
Eu tive um pai de axé artístico que foi o Ayrson Heráclito. Ele foi meu professor na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e lá fundamos um grupo de pesquisa e experimentação em performance. Por estarmos em Cachoeira, uma cidade que tem a formação cultural enraizadamente negra, essa questão das identidades afro-brasileiras apareceram já nos meus primeiros trabalhos.
3) A religiosidade de origem africana também aparece desde o seu começo na arte como você trata isso?
Para mim, a religiosidade é uma parte fundante dentro do nosso processo de formação da subjetividade. A religiosidade está presente, obviamente, mas não chega a ser um algo central dentro da minha prática artística. Embora todos os meus trabalhos em ação sejam uma prática ritual. Através de gestos repetidos, tento purgar essa memória que está embotada pela violência colonial. Então, é um aspecto que está presente, mas meu interesse maior é entender como as cosmologias africanas e afro-brasileiras nos informa uma outra forma de vida, que se distancia de um modo de vida que tem a Europa como parâmetro. Porque o nosso tempo é outro.
4) Me fala um pouco sobre a sua infância/ Você brincava muito? Havia um mundo lúdico?
Minha infância não foi das mais fáceis porque eu cresci no meio de uma casa somente com adultos e, consequentemente, acompanhando muitos problemas que não são associados a uma infância dos sonhos. Minha válvula de escape era a escola, os estudos e, como citei, tinha necessidade de criar coisas. Mas, não segui o arquétipo da criança artista.
5) Qual a relação do açúcar no seu trabalho? Porque você o usa como elemento pictórico?
O açúcar é um material orgânico que está presente na nossa vida de diferentes maneiras: a mais óbvia é na nossa alimentação. E, por outro lado, ele estrutura a sociedade brasileira porque ainda hoje vivemos as consequências e feridas causadas pelo sistema de exploração colonial escravista no Brasil. Parece algo muito distante, mas o Brasil foi o último país no mundo a abolir a escravidão e depois disso ainda temos uma série de políticas de segregação a partir da raça. Então, o açúcar é uma das gêneses das desigualdades no Brasil. O açúcar branco, até hoje, nos diz muito sobre a ruína da vida negra.
Além disso, eu sou do Recôncavo da Bahia, uma das regiões mais promissoras no período do ciclo do açúcar. E hoje uma região com uma iniquidade sócio-racial muito forte. Então, me debruçar em trabalhos sobre a história e a memória do açúcar é uma tentativa de entendimento do agora. Para mim o açúcar tem essa capacidade de ligar os tempos.
6) Você gosta de estudar as pessoas e de retratos quais são as suas referências?
Esse é um processo muito curioso. Porque, ainda que eu use fotografias para compor as minhas pinturas, eu gosto de ter a liberdade de ir imaginando outros rostos dentro daqueles que eu pego como referência. Eu sempre brinco que não sou um bom retratista porque não sou fiel aos corpos originais. É imprescindível ter uma fotografia como base para a criação da pinturas, mas eu sempre mudo. No final, nunca é tão fiel à original. Gosto de fazer um exercício imaginativo, mais do que um dever técnico de tentar reproduzir na pintura as nuances capturadas pela fotografia.
E eu sou um fotógrafo também. Então, para mim, a pintura não precisa ser hiperrealista.
A pintura me salvou nessa quarentena porque é um exercício de liberdade criativa, fico sentado na frente da tela durante um bom tempo e serve como uma evasão para o momento crítico que estamos vivendo. Ainda que o trabalho final tenha uma intencionalidade – que é a de retratar corpos e vivências que foram negligenciados ao longo da história da arte – para mim é fundamental que durante as pinceladas seja algo interno, um diálogo comigo mesmo.
7) Você tem seu atelier em Salvador, você acha que o distanciamento dos centros como Rio e São Paulo ainda afeta a carreira do artista ou o mundo das redes sociais acabou com essa distância?
Sem dúvidas. Há uma geopolítica muito forte na arte brasileira. Até mesmo na distribuição dos equipamentos culturais. O eixo Rio-São Paulo dispõe de uma estrutura que outros lugares no Brasil não conseguem possuir. E isso por diversos motivos, históricos e também sociais.
Também há em alguns casos um certo julgamento do que é feito fora desse eixo como algo menor ou menos importante. A arte feita nesse eixo é tomada como universal e tudo que não é dali é enxergado como regionalista ou excessivamente situado.
Acredito que essa bolha tem sido pouco a pouco superada. No entanto, há uma estrutura muito consolidada ainda em termos regionais.
A maioria das exposições que participo é no Rio e em São Paulo, antes da pandemia estava sempre nesse trânsito, mas não largo a Bahia por nada. Para mim, é fundamental continuar vivendo aqui. É o meu lugar no mundo.
8) Quais são seus planos para frente?
Agora continuo trabalhando nas pinturas e no projeto decorrente do Soros Arts Fellowship, que fui laureado em julho deste ano. Essa bolsa promovida pela Open Society Foundations tem como objetivo principal continuar a pesquisa nas ruínas dos antigos engenhos de açúcar na Bahia e elaborar uma exposição de grande porte.
Para o primeiro semestre do próximo ano, prepararei um solo na Galeria Leme, que me representa em São Paulo.
9) Você conhece a África? Tem vontade de ir a onde?
Só conheço de passagem, infelizmente. Tenho muito desejo de conhecer a região que era chamada de Costa da Mina, que hoje são os países de Gana, Togo, Benin e Nigéria. É uma região muito rica e cuja Bahia teve e tem uma relação muito próxima em termos de ancestralidade. Porém meu real interesse é em entender as dinâmicas contemporâneas desses países. Gana, por exemplo, tem uma cena de diferentes artes contemporâneas muito efervescente, com ótima música e pintores excepcionais.
10) Além da pintura o que mais você tem trabalhado nessa pandemia?
Aliado a tudo isso, estou concluindo meu doutorado em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia. Então, tenho me dedicado à minha tese. Trabalho também como curador da galeria do Goethe-Institut aqui em Salvador. No início de outubro, abrirá uma exposição coletiva organizado por mim com trabalhos de Iris Helena, No Martins, Rafael Bqueer e Ventura Profana.