Essa semana o nosso entrevistado é o artista plástico Fernando Leite. Quando conheci as pinturas de Fernando Leite na galeria Marcia Barrozo do Amaral foi paixão á primeira vista. Na época não consegui entrevistá-lo, mas finalmente chegou o dia. Espero que vocês gostem!
Quando as artes plásticas entraram na sua vida?
Comecei a desenhar muito cedo, talvez logo na alfabetização. Era divertido e solitário. Na casa dos meus pais havia uma bíblia muito bonita, cheia de fotos de pinturas do Renascimento e do Barroco, e uma coleção de fascículos dos Gênios da Pintura, da editora Abril, que eu gostava de ver e copiar. No começo eu gostava de Jesus na cruz, da coroa de espinhos e dos pregos nas mãos. Mais tarde, com o Gênios da Pintura, fui me interessar por pinturas menos narrativas, e vi Corot, Monet, Picasso, Matisse e Morandi. Eu desenhava e pintava e tive umas poucas aulas de pintura. Com ajuda do meu pai, aprendi a construir chassis e esticar telas. Conheci alguns artistas da minha cidade (Araraquara, SP) e participei de algumas exposições, de maneira bem diletante. Até os 18 anos, quando vim ao Rio estudar no MAM, eu nunca tinha ido a um museu ou galeria de arte.
2) Quais foram suas primeiras inspirações?
Acho que posso indicar duas fontes bem distintas, como eu disse acima: a pintura religiosa, que me interessava inicialmente pela narrativa e pelo erotismo, e uma pintura mais formal, que me ensinou a ver a cor como elemento de relação entre formas. Com essas duas fontes, posso dizer que me entendo fundamentalmente com pintor. Eu nunca fiz esculturas, objetos, instalações, performances, poemas; apenas desenhos, gravuras, pinturas e, recentemente, fotografias. Além disso, em 2000 fiz um livro azul em xilogravura, que chamei de Padova, e agora estou fazendo um outro com fotografias (Esquadros), mas tanto um quanto outro se relacionam com questões de pintura.
3) Qual foi o seu percurso como artista plástico e designer?
Quando eu cheguei àquela idade em que temos que escolher uma profissão, uma carreira ou um campo de atuação, eu não tinha nenhuma ideia de como poderia ser a vida de um artista. Eu não conhecia nenhum artista “profissional” e morava numa cidade em que isso não era uma opção. Como seria a vida produtiva nesse campo? Como viabilizar uma vida, que tipo de renda e despesa? Eu não tinha nenhuma ideia e ninguém que eu conhecesse podia me orientar. Eu sabia que precisava continuar pintando, mas não imaginava o que me esperava. Vim ao Rio de Janeiro passar uma temporada, estudei no MAM e aí comecei a vislumbrar alguma coisa sobre esse assunto. Na Escola de Belas Artes da UFRJ havia o curso de Comunicação Visual e eu achei que esse poderia ser um começo. Comecei o curso em 1983. Naquela época não se falava em “design” ou designer” e a profissão que me esperava no final do curso era a de programador visual, mas isso não me pareceu nada interessante. Não sei se na época não entendi direito o que se falava, mas me parecia que o objetivo dessa atividade seria de trabalhar em publicidade, marketing ou vendas. Em casa, eu continuava pintando e, na faculdade, me posicionava como artista, não como programador visual. No terceiro ano da faculdade acabei mudando de curso e me graduei em pintura. Em 1987, um ano antes de me formar, participei da mostra Novos Novos, na Galeria de Arte Centro Empresarial Rio e, a partir daí, não pensava mais em trabalhar como programador visual. Com essa exposição, consegui vender as primeiras pinturas, participar de outros eventos e aluguei, com alguns amigos, uma sala em Copacabana, que foi meu primeiro ateliê. Tinha 23 anos, era pintor, e bastava.
Alguns anos depois, em 1994, ao comprar o primeiro computador, inicialmente destinado a ser misto de máquina de escrever e brinquedo eletrônico, comecei a produzir algumas imagens digitais e páginas com texto-imagem. Fiz capas para CDs e fitas cassete. Mais tarde, desenhei folders para alguns amigos. Aprendi rapidamente a programar e resolver problemas técnicos. Em 1999 eu estava em Nova York com uma bolsa da Pollock Krasner Foundation e aproveitei o inverno para fazer um curso de atualização no Parsons Institute of Design. Ao voltar ao Brasil no final de 2000, completamente sem dinheiro, procurei um emprego como designer. Trabalhei sete anos no Departamento de Comunicação da FINEP. Saí em 2007 e no ano seguinte abri a Verbo Arte Design, para trabalhar em projetos de design gráfico em arte contemporânea. Era designer, mas não bastava.
4) Você tem processos criativos diferentes entre o design e a pintura?
São processos completamente distintos. No meu caso, uma coisa alimenta a outra, mesmo que de maneira imprecisa e pouco tangível. Design é um serviço; há uma demanda e eu tenho que responder com uma ideia e um processo, que no final pode ser um evento ou um produto. A demanda vem de uma curadoria ou instituição, a ideia é um projeto gráfico, o processo é o trabalho em si, o evento pode ser uma exposição. O produto pode ser um convite, folder, catálogo ou um livro. É sempre um problema a ser resolvido, um processo que envolve uma série de pessoas, muita escuta, muito diálogo, e uma compreensão dos objetivos de cada projeto. Há propostas, recusas, avanços e recuos. Várias tentativas até chegar a um resultado satisfatório. Não sou um designer com postura autoral, não sou ilustrador nem tenho “estilo”. Como o meu lugar de atuação é arte, procuro trabalhar com um design meio invisível, que organiza as informações da melhor maneira sem que os elementos gráficos se sobreponham às informações e à leitura das imagens.
Em 2007 eu comecei a fotografar, inicialmente interessado na fotografia como uma ferramenta auxiliar nos trabalhos de design gráfico. Em seguida comecei a montar uma coleção de imagens, que estou dispondo num livro sem-fim, que eu chamo de Esquadros, que um dia talvez eu consiga concluir. Nesse conjunto, há flagrantes pictóricos de fachadas de casas, situações de rua, registros de intervenções vernaculares em arquitetura, há muita cor,
e uma certa geometria que é corrigida no photoshop. Há também uma pequena coleção de objetos engraçados, como lixeiras, vasos, santos, estátuas. E há imagens dos jardins e parques, que retirei do conjunto de fotografias para usar na pintura, e acabaram formando a série Ver te, que são as pinturas dos parques e jardins da Mata Atlântica, que estou desenvolvendo desde 2015. Hoje estou trabalhando em um conjunto de três pinturas bem grandes sobre fotos que tirei em passeios de bicicleta pela estrada do Redentor, durante a pandemia.
5) Qual pesquisa ou curso que mais te rendeu?
Acho que aprendi um pouco com cada oportunidade que tive ou com as pessoas que conheci. Não tive um mestre ou guia. Na Escola de Belas Artes aprendi (um pouco) sobre a técnica tradicional; com Manfredo de Souzanetto, no Parque Lage, aprendi muito sobre técnicas nada tradicionais. Ainda no Parque Lage, com Ronaldo do Rego Macedo, aprendi a pensar a pintura como a articulação de um sistema cromático e uma linguagem de planos e formas. Em Nova York, aprendi a trabalhar em gravura e serigrafia em sistemas muito práticos e eficientes de produção.
6) Você fez aulas com Aluísio Carvão. Como era esse convívio?
Em 1982 eu tinha 18 anos e não sabia quase nada. Não conhecia Hélio Oiticica, nem as Lygias, nem o concreto nem o neoconcreto. Cheguei ao MAM para procurar cursos de desenho e pintura, e fui recebido por Lilia Kuperman e seus olhos de piscina. Ela me inscreveu no curso de desenho, com Gastão Manoel Henrique, e pintura, com o Carvão. Eu adorava o Carvão, mas não entendia o que ele queria. Eu não tinha conhecimento suficiente para entender o poema. Algumas coisas que ele me dizia só fui entender anos mais tarde, quando eu estava no Parque Lage, e fazia pinturas com hierarquia de cores, planos, cortes, recortes, luzes, temperaturas, vibrações. Essas palavras eu ouvia na fala do Carvão, em 82, mas na época eu não sabia o que fazer com aquilo. Foi maravilhoso estar ali, mas eu não estava preparado.
7) O verde está muito presente em suas recentes obras. Porque escolheu essa cor para se expressar?
Não há um vetor expressivo no uso do verde. O verde está ali como um elemento objetivo da construção da imagem, uma vez que as pinturas da série Ver te são criadas a partir de fotografias. Ao usar a cor local (a folha é verde, o céu azul, a terra marrom) eu fico livre para tratar da pincelada e da mancha como elementos fundamentais da construção da imagem. No começo desse processo, eu estava interessado em mimetizar, em ser eficiente na cópia da imagem fotográfica e em ter uma imagem pictórica razoavelmente convincente. Mas a construção pela mancha é muito mais interessante, e minha mão, impaciente, então o processo tomou outro rumo. Eu aprendi muito nesse processo, e agora o que imagino fazer é outro tipo de mímesis, não mais da imagem, mas da própria natureza (e da vida). Porque hoje eu não pinto a imagem da folha ou da árvore, faço com a tinta o movimento que a folha faz no seu crescimento; o movimento de crescer e se misturar a outras, de se entrelaçar e criar uma teia, um organismo, um ser vivo, que é o próprio mundo. Porque é isso que eu vejo no mundo, uma grande teia (web), entrelaçando tudo o que cresce e tudo o que morre, num conjunto dinâmico de forças e pulsões. Tudo cresce e tudo se transforma; uma coisa se funde na outra e se sucede na outra. Lavoisier pandêmico: é preciso que morra o tirano para que viva a democracia.
8) Você se reconhece como um colorista?
No começo, eu trabalhava com relacionando cores, contrapunha planos de cor, áreas de luzes, usava estruturas geométricas com diferentes temperaturas, procurava harmonizar, como em música ou em um jogo. Um pouco na tradição de Matisse, Volpi, Carvão. Depois de um grande hiato, em que fiquei alguns anos sem pintar, isso não fazia mais sentido. Eu precisava criar uma relação mais profunda e intensa com o fazer, e tensionar os significados do trabalho em pintura para além da ideia de harmonia ou coerência. Retomei com fotografia e pintura de matriz fotográfica, usando cor local (a da tradição pré-expressionista) e muita matéria de tinta. A construção pela mancha e pela matéria hoje me interessa mais do que o uso da cor. A pinturas Ver te são monocromos em verde, mas poderiam ser cinzas. O fato de serem em verde é um dos fios que ainda amarram essas pinturas às suas matrizes fotográficas, mas como avançar do processo pode ser que isso já não seja mais importante.
9) Como você tem trabalhado na pandemia? O que você tem pintado?
Tenho trabalhado muito mal, sem concentração, com muito medo e muita raiva. É o período mais difícil e sofrido de nossas vidas. O medo da doença e da morte só não é maior do que a tristeza e a indignação pelo sofrimento de muitos e a estupidez de outros. Vejo muita dificuldade no futuro, com a institucionalização da estupidez, da violência, da burrice e da mentira. O que virá depois da farsa?, pergunta Hal Foster. Estudei muito, trabalhei um pouco. Durante o período mais restrito da quarentena, no ano passado, fiz algumas fotos do céu, anotando os dias, uma foto por dia, em diversos horários. Naquele momento era a paisagem possível, a vista da área de serviço da minha casa. A partir dessas imagens fiz pequenas pinturas sobre madeira, em azul, branco e cinza, do céu nos dias de maio, junho e alguns dias dos meses seguintes. Eu pensava na nuvem como signo, como me ensinou Paulo Herkenhoff ao citar A teoria da nuvem, de Hubert Damisch, num ensaio sobre Guignard. Chamei esse conjunto de Mira. São 28 pinturas, quatro delas ainda inacabadas.
Em junho do ano passado, cansado de tanto isolamento, comprei uma bicicleta elétrica e comecei a subir a estrada das Paineiras para fotografar a floresta a partir da estrada do Redentor. Dessas imagens estou produzindo as novas pinturas da série Ver te. É isso que estou fazendo agora. Sou muito lento. Eu gostaria de trabalhar incansavelmente, e produzir a pintura em uma sessão só, para trabalhar a quente, com a tinta viva, como um nascimento. Mas o esforço físico é muito grande e a visão (no sentido do entendimento), demora a compreender. Meu olho é lento e a mão, impaciente.