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A artista nascida em Belo Horizonte e radicada em Brasília vai mostrar pinturas inéditas em que usou o tratado milenar chinês “I Ching” (o “Livro das Mutações”) para criar uma série de obras em que adiciona o acaso – os hexagramas resultantes do jogo de moedas – ao seu processo de construção das tramas de linhas horizontais e verticais em cores fortes. Ela tomou contato com o “I Ching” quando morou em Hong-Kong, entre 2012 e 2015, e ao voltar ao Brasil começou a experimentar este sistema em seu trabalho, que apresenta agora. A exposição celebra um ano da sede da galeria no Baixo Gávea, na Rua dos Oitis.

Oráculo

 

A Galeria Movimento apresenta a partir do dia 5 de novembro de 2022 a exposição “Oráculo”, com pinturas inéditas e recentes da artista Marcela Gontijo (1966, Belo Horizonte), em que o processo usado foi derivado do livro “I Ching” (o “Livro das Mutações”), um compilado milenar de textos de sábios chineses, incluindo Confúcio (c. 552 a.C.-479 a.C.), que ao longo dos séculos foi usado como oráculo por governantes.

Marcela Gontijo teve contato com o livro quando morou em Hong-Kong, entre 2012 e 2015, ao ler uma menção a ele durante sua pesquisa sobre os processos de construção das cidades chinesas, que à época resultou na série de trabalhos “New Territories”, mostrados em 2016 na Galeria Movimento, com curadoria de Felipe Scovino, também curador da exposição atual. Além das pinturas, será exibido um vídeo sobre o processo criativo da artista. A exposição celebra um ano do espaço da Galeria Movimento na Gávea.

Ao voltar de Hong Kongpara sua casa em Brasília, Marcela Gontijo procurou o “I Ching”, e adquiriu a edição clássica publicada pela Pensamento, com tradução e comentários do sinólogo alemão Richard Wilhelm(1873-1930) e o prefácio de C. G. Jung (1975-1961). A artista explica que nunca “jogou” o “I Ching” para uso pessoal, divinatório, e sim para se apropriar em seu trabalho “do mecanismo interessante da combinação das linhas”.

O “I Ching”apresenta 64 hexagramas, cada um com seis linhashorizontais sobrepostas – contínuas ou partidas – que representam um complexo conjunto de imagens metafóricas e orientações, abrangendo várias áreas do conhecimento chinês armazenado por séculos. A consulta ao livro é feita por seis jogadas consecutivas com três moedas, e o número obtido pela soma de cara (2) e coroa (3). O resultado de cada jogada indica um hexagrama correspondente.

“O que me atrai neste trabalho da Marcela Gontijo é a forma de como ela lida com o paradoxo entre seu sistema de regras muito objetivas e o acaso do jogo do ’I Ching’”, conta o curador Felipe Scovino. “À pergunta de qual o diferencial de mais um trabalho construtivo, em sua longa tradição da história da arte brasileira, desde os anos 1950, Marcela Gontijo responde quebrando esta visualidade, de reconhecimento aparentemente fácil, introduzindo um elemento oriental ao processo de criação, e discutindo a herança europeia. Aleatoriamente, vai construindo um sistema de regras – par ou ímpar – para a escolha das cores.

De uma certa forma, remete aos russos do início do século 20, iniciadores da arte abstrata, como Kandinsky (1866-1944), que trouxeram elementos de espiritualidade, misticismo e metafísica. Marcela Gontijo cria umalógica interna para a disposição do hexagrama sobre a tela, agregando ao pensamento construtivo um dado espiritual”, diz.

A artista explica que “depois de ‘New Territories’, uma colagem com linhas desordenadas que mostrava o caos urbano de Hong Kong, o ‘I Ching’ foi uma maneira de organizar, reordenar o meu trabalho, trazendo o lado do pensamento e sabedoria orientais”. Ao sistema de linhas horizontais, Marcela Gontijo acrescentou linhas verticais, como contraponto ao pensamento holístico oriental, e alusão ao mundo ocidental, cartesiano.

Oráculo

 

 O ACASO COMO ELEMENTO DO PROCESSO ARTÍSTICO

O acaso, o hexagrama a ser obtido em cada jogada, foi o elemento que Marcela Gontijo quis acrescentar ao seu processo. A partir do título “I Ching” (livro ou tratado das mutações), a artista indaga: “O que muda? É o movimento, que está ligado ao acaso”. “Quis dar uma chance ao acaso. O desenho é todo estruturado pelo jogo. Quando a pintura começa, não sei como vai terminar”, conta. Mas ela ressalta que “as combinações sempre são harmônicas”.

Inicialmente, Marcela Gontijo quadriculou a tela para poder aplicar as linhas, todas da mesma largura, e estabeleceu umconjunto de quatro cores, atribuindo uma cor para cada jogada. A cada hexagrama resultante, ela pintava a tela, de acordo com as linhas determinadas. E assim até preencher todo o espaço. Atrás da tela, a artista anotou o nome de cada hexagrama e sua composição.

A partir da ideia de movimento e mutação contida no nome “I Ching”, a artista criou seu próprio sistema de sequência. A cada trabalho que fazia, retirava uma cor do conjunto de quatro do trabalho anterior, e acrescentava uma nova. De tal forma que os trabalhos ficam encadeados, e “criam uma historinha”. “As possibilidades são infinitas”, ela comenta, “e posso criar continuamente dentro dessa lógica”. Nos trabalhos apresentados, estão cores fortes, “chapadas”, como verde, azul cobalto, amarelo, vermelho, siena, ocre, violeta elaranja.

O uso da cor neste trabalho não é o principal interesse da artista, e sim “um elemento para falar do sistema, da trama”. Nesta série de pinturas, as cores usadas “estão todas aparentes, não somem”.

Marcela Gontijo morou em São Paulo e Cidade do México, antes de Hong Kong, e sempre teve ateliê fora de casa. “Gosto muito de ficar dentro do ateliê, pra onde vou diariamente. E para mim tudo parte do processo”, comenta. Estabelecida com a família em Brasília, onde também moram sua mãe e seus irmãos, pela primeira vez a artista tem o ateliê dentro de casa, onde mantém sua rotina diária de trabalho.

Oráculo

 

INSTITUTO PAULO GONTIJO

Paralelamente a sua atividade como artista, Marcela Gontijo preside o Instituto Paulo Gontijo, dedicado ao incentivo da pesquisa sobre a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), doença que acometeu seu pai, Paulo Gontijo (1932-2002), físico, engenheiro civil e empresário, idealizador da instituição. Apaixonado pela ciência e pelo Brasil, Paulo Gontijo foi diagnosticado com ELA em 1999, e desde então se dedicou a campanhas e pesquisas para estudar a causa da doença, descobrir tratamentos e divulgar informações. Autor de vários livros, publicou “Tese de um condenado”, autobiografia com relatos sobre a ELA.

O Instituto Paulo Gontijo foi fundado em 2005pela família – seus quatro filhos Valéria, Marcela, Júnea e Paulo Gontijo Júnior e sua viúvaMaria José Teixeira – e a partir de seus escritórios em São Paulo e Brasília difunde informações e campanhas de conscientização sobre ELA e Doença Neuromuscular (DNM). Desde 2008, o Instituto Paulo Gontijo concede um prêmio de Medicina, para trabalhos de pesquisadores de todo o mundo sobre ELA. A cada edição uma cidade é escolhida para a premiação, que já ocorreu em Brasília, São Paulo, em Sydney, Chicago, Milão, Bruxelas, Orlando, Dublin, Boston, Glasgow e Perth. Com a pandemia de Covid-19, a premiação foi online em 2020 e 2021, formato que será também adotado em dezembro de 2022, retomando ao formato presencial em 2023.

Outro legado de Paulo Gontijo é o Templo da Ciência, em Goiás – rodovia BR 050, quilômetro 141 – aberto gratuitamente à visitação pública. Construído em forma octogonal, com sete painéis externos que representam a criação do universo, segundo a Teoria Energética concebida por Paulo Gontijo, onde estão homenageados 246 renomados cientistas nas áreas de Filosofia, Matemática, Física, Química, Biologia e Religião. Na cúpula, está uma réplica do Sistema Solar, e nas laterais boxes destinados à guarda de obras científicas.

 

Oráculo

 

 Serviço – Exposição “Marcela Gontijo”

Galeria Movimento, Gávea, Rio de Janeiro

Abertura: 05 de novembro de 2022, das 14h às 19h

Até: 3 de dezembro de 2022

Curadoria: Felipe Scovino

Entrada gratuita

Rua dos Oitis, 15, Gávea, CEP 22451-050, Rio de Janeiro, RJ

Terça a sexta, das 11h às 19h

Sábado, das 13h às 18h

Telefone – +55 213197-1331

Canais digitais:

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Oráculo

 

COEXISTÊNCIA PACÍFICA: ORDEM E ACASO
Felipe Scovino
Aparentemente, as obras mais recentes de Marcela Gontijo, denominadas Mutações (2020-), remetem ao campo da produção abstrato-geométrica no Brasil, particularmente o seu início, no começo da década de 1950. São telas que materializam um grid, ou uma sucessão de cruzamentos de linhas verticais e horizontais, que constroem camadas sobre camadas e evocam jogos geométricos.

Estão contidas nessas obras o interesse de Marcela pela Gestalt, pelo jogo óptico típico do legado que o concretismo e o neoconcretismo deixaram para a arte brasileira na passagem do moderno ao contemporâneo. Uma herança substancial, que, ainda
hoje, deixa seus vestígios em produções artísticas que investigam a associação entre geometria e corpo, por exemplo. Contudo, Marcela projeta seu próprio caminho. Não abandona, evidentemente, o referente da geometria, mas constitui um método que faz toda a diferença na produção de suas obras mais recentes.

Marcela opta pelo I Ching, que descobriu quando morava em Hong Kong, para construir suas pinturas. Esse oráculo, também conhecido como Livro das Mutações, é o ponto de partida, a essência e o método para essa série de obras. Ao jogar as moedas, o par ou ímpar acaba por decidir a composição cromática dos hexagramas que compõem cada uma das telas. Cada jogada representa uma cor, a composição de um hexagrama.

Além disso, ainda sobre as moedas, o número par decide pela linha partida e o número ímpar gera a linha inteira. A sequência cromática é decidida pelo acaso, e é ele que, paradoxalmente, constitui uma ordem ou regra para a construção das pinturas. Eu diria que não se está mais somente falando em campo da criação, mas no âmbito da invenção: o jogo — ou oráculo — consiste em manipular inventivamente as formas, produzir uma ordem maximal de informações visuais, estabelecer processos semióticos que forçam artista e espectador a romperem os esquemas convencionais de percepção e exercitarem essa nova ordem proposta.

Há uma valorização dos efeitos da pesquisa e invenção de formas, há uma “fé”; porque, afinal de contas, estamos também falando em espiritualidade, na potência do acaso na criação formal. Frente ao esquema tradicional e ao passado robusto da geometria no campo das artes visuais brasileiras, Marcela rompe um esquema formal dominante e todo o sistema de significações dele, necessariamente solidário. O que se coloca como decisivo é a forma como a artista lida com o paradoxo entre seu sistema de regras muito objetivo e a casualidade do I Ching.

A espiritualidade e sua associação com o abstracionismo deixam Marcela mais próxima de Kandinsky do que dos neoconcretos, embora as diferenças entre ela e o artista russo sejam enormes. Não se trata de comparar as obras nem os projetos (até porque os russos se aproximaram de práticas místicas que destoam do interesse de Marcela na realização de Mutações), mas apontar aquilo que foge ao que se espera, de um desvio frente à ordem, isto é, em como as coisas do espírito atravessam uma pesquisa “cientificista”. A espiritualidade (ou
transcendência) nas artes foi tratada em diversos tempos e sob muitas maneiras.

Lembremos, por exemplo, dos vigorosos estudos de John Cage a respeito dos cogumelos ou de sua peça Music of Changes (1951), que fez uso do I Ching como parte do processo de composição. Há, ainda, o projeto de Matisse para a Chapelle du Rosaire de Vence, construída entre 1947 e 1951 na França. E não podemos esquecer da Igreja Nossa Senhora de Fátima, inaugurada em Brasília em 1958 e adornada com um painel de azulejos de Athos Bulcão e um afresco de Volpi.

À pergunta inicial, de qual o diferencial de mais uma obra de tendência construtiva na
história da arte brasileira, Marcela responde quebrando essa visualidade, de reconhecimento aparentemente fácil, introduzindo um elemento da cultura oriental ao processo de criação, e discutindo, por tabela, a forte presença da herança europeia na formação das artes visuais no Brasil.

A escolha de Marcela pelo I Ching descontrói associações perenes a respeito da visualidade do grid. A ideia sobre uma imagem derivada de um trabalho racionalista, objetivista, privilegiador de procedimentos matemáticos e de uma integração positiva na sociedade é sobreposta — afirmo isto porque a artista não anula essas referências, mas o seu modo de concebê-las — por um método que valoriza a intuição e a imprevisibilidade.

É importante acentuar que o interesse pela geometria sempre delineou o trabalho de Marcela. Em sua última exposição individual, New Territories (2016), a artista fez uso da instalação como suporte, mas sem perder a instância mondriânica do grid. Marcela fazia referência, naquela altura, ao caos da metrópole e ao ritmo acelerado.

Como escrevi naquele tempo para o folder da exposição, “a artista faz uso de recortes de jornais e revistas que, colados um ao lado do outro ou sobrepostos, e depois sendo cobertos por uma camada de tinta, revelam uma cacofonia e perturbação visual que são típicos de uma cidade em convulsão, crescendo, expandindo, ativando todos os componentes que a fazem ser uma metrópole”.

Mutações é resultado dessa pesquisa que se interessa, em particular, pela cor. Nessa exposição, a cor também possui um valor autônomo, um valor em si, metafísico, relacional, e não a constituição de um campo ou área que funciona, basicamente, como elemento divisor de espaço, parte da dinâmica informacional do trabalho. A cor, decidida pela jogada das moedas, detém uma origem subjetivista que desencadeia, por sua vez, um fim, um resultado.

As pinturas de Mutações são um projeto, mas é importante salientar que não podem ser vistas isoladamente como algo puramente mecânico. É a presença do imponderável, da assimilação de sutilezas inefáveis que as distinguem do reino objetivista da formalização matemática e da pura visualidade. O I Ching é o primeiro passo, é a decisão sobre o gesto, por onde ele caminha e que procria. Marcela torce, rasga e dobra um certo automatismo mecânico na feitura do grid. Mutações não é uma pintura orgânica, como se convencionou
nomear parte de certo repertório contemporâneo nas artes, nem exatamente requisita o corpo.

Quando se toma conhecimento do procedimento em como as pinturas são feitas, o que mais intriga, ao menos para mim, é especular e imaginar o lance de dados — eis o acaso mallarmeniano — e a forma em como os hexagramas são construídos, a escolha das cores, as formas que vão pouco a pouco sendo formadas.

É claro que Marcela não deixa de discutir também situações típicas da pintura, como gesto, plano, espaço, cor, escala, etc. Todos estes elementos estão concentrados no grid, uma síntese dos interesses e debates levantados pela artista ao longo de sua trajetória, seja o grid dissimulado, recortado e dobrado em instalações, seja no plano bidimensional associado a procedimentos que nos levam a pensar na sua estrutura aberta e imprevisível.

Desviar a nossa atenção para o gesto dos dados, para aquilo que é pura imaginação, isto é, um processo que não pode ser previsto, é a força dessa série.